De como Cecil Taylor puxou o tapete

A semiótica é complexa. Está nos cursos de comunicação e filosofia, enche prateleiras de teses, mas pouca gente entende o que se passa e não dá um bom assunto na fila do cinema.

A pipoca é um ícone. O sal é um símbolo. Ou vice-versa

Compreender a semiótica é como compreender linguística. Sempre uma nuance, algo obscuro entre uma letra e um som. A semiótica é a física quântica das humanidades. É possível entender sem compreender.

Há lá um conceito bonito: Primeiridade. Googlei uma definição:

A qualidade da consciência imediata é uma impressão (sentimento) in totum, invisível, não analisável, frágil. Tudo que esta imediatamente presente à consciência de alguém é tudo aquilo que está na sua mente no instante presente. O sentimento como qualidade é, portanto, aquilo que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência imediata, aquilo que se oculta ao nosso pensamento. A qualidade da consciência, na sua imediaticidade, é tão tenra que mal podemos tocá-la sem estragá-la. Nessa medida, o primeiro (primeiridade) é presente e imediato, ele é inicialmente, original, espontâneo e livre, ele precede toda síntese e toda diferenciação. Primeiridade é a compreensão superficial de um texto (leia-se texto não ao pé da letra; ex: uma foto pode ser lida, mas não é um texto propriamente dito).

Isso está no Wikipedia e é atribuído à Charles Sanders Pierce, um dos grandes teóricos da Semiótica. A primeiridade é a primeira das grandes categorias de sua tese principal. Trata um pouco do sentimento de conforto ao reconhecer uma imagem ou um som, já reproduzida tantas vezes que absorvemos no nosso inconsciente. Como se pensássemos, isso eu reconheço, logo isso existe.

Corta. Cecil Taylor e seu piano no palco do Auditório Ibirapuera. Ali, onde toda música fica mais bonita. Sua presença me fez pensar nessa tal primeiridade. Polainas coloridas, dois ou três dreads caindo sobre o cabelo ralo, um estranho cinto dividindo-o em dois e um pandeiro jogado sobre as cordas do piano.

Cecil, o duende, cortou o piano pela metade, como seu cinto. Repetia as escalas. Subia e descia, à esquerda e à direita. Não reconheço, não existe. O desconforto do público é evidente. Cecil funciona em outra órbita.

Tirou o pandeiro do piano, coçou um calcanhar na outra polaina, e nos deu uma frase. Poucos segundos de primeiridade. Logo isso existe. As confortáveis poltronas do Auditório Ibirapuera recebem as costas recostando como as poltronas confortáveis devem fazer. Os pés no chão acarpetado. Uma frase de piano e os pés confortáveis no chão.

E Cecil Taylor puxou o tapete. Não entendo de semiótica mas não há nada como não saber. Cecil e seu jogo de dar e tirar. Oferecia uma centelha de notas confiáveis, existentes como o chão firme. E novamente puxava o tapete, permitindo a leve sensação de voar. Não há nada como não saber o que nos aguarda.

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